se as memórias fossem enlatadas, também teriam prazo de validade?
uma analise de chungking express e o tempo das coisas.
tem coisas que só fazem sentido quando estão prestes a vencer.
em chunking express, wong kar-wai transforma uma lata de abacaxi numa metáfora sobre o tempo das coisas: tudo expira. sejam alimentos, pessoas ou sentimentos.
o personagem do policial 223, recém-abandonado, passa dias comprando latas com a data de validade 1º de maio. como se, ao manter aquele prazo, ele também mantivesse a esperança viva. ele até diz: “no dia 1° de maio as latinhas vão perder a validade assim como meu amor com a may.” ele age como se o amor tivesse um vencimento negociável. mas o tempo não para por ninguém. e o amor, às vezes, expira antes do que esperamos.
talvez parte de amar seja isso? acreditar que podemos estender a validade das coisas.
mas ao contrário das latas de comida, o amor não avisa quando vai estragar. às vezes, ele apodrece ainda na prateleira. às vezes, nem chega a abrir. há amores que vêm com data de validade escondida. a gente só descobre quando já está vencido. às vezes nos alimentamos de amores estragados e não damos conta.
e não é assim também com as pessoas que passam por nós? encontros rápidos, olhares que quase foram alguma coisa… sempre quase. e a vida segue, como os frames acelerados de hong kong nas lentes de wong kar-wai. tudo desfocado, tudo fugindo da nossa tentativa de controle.
a gente acaba aprendendo que nem tudo é pra durar.
“se as memórias fossem enlatadas, também teriam prazo de validade?”
essa pergunta atravessa todo o filme, e me atravessou também. me peguei pensando e repensando.
“quantas memórias já me passaram a validade? e se as memórias tivessem mesmo prazo de validade, será que eu teria mais coragem de deixá-las ir?”
às vezes a gente tenta guardar lembranças seja ela uma foto, uma mensagem, um vídeo. como se fosse possível conservar um amor que já venceu. mas as memórias, diferente das latas, não têm uma data escrita. elas tendem a estragar de outro jeito.
às vezes somem, às vezes distorcem e às vezes se tornam algo que nunca foram de verdade.
quero acreditar que há memórias em que o prazo de validade se estende à nossa morte. algumas pessoas e lembranças só perdem a validade quando a perdemos também.
na segunda história, fae faz outra pergunta, ainda que sem dizer em voz alta: “se eu reorganizar a vida dele, será que ele me nota? será que eu viro parte da prateleira dele?”
é outra forma de falar sobre amor e controle. sobre como tentamos, de algum jeito, habitar a vida do outro. deixar pistas, mudar pequenas coisas e torcer pra que o outro perceba. e talvez com sorte, quem sabe, queira ficar. mas o amor, como a cidade no filme, é movimento. não se deixa enlatar.
tive que entender que tudo tem um tempo. que alguns amores são como latas de abacaxi, eles vêm com prazo, e vencem. e outros são como a música que toca sem parar na lanchonete: repetem tanto que, de tanto ouvir, a gente se acostuma. e sem perceber, aquilo que parecia passageiro, se entende a validade.
california dreamin’ toca na lanchonete, como uma trilha de desejos e esperanças que parecem estar sempre em movimento. nunca totalmente alcançadas, mas também nunca abandonadas. essa é uma música sobre querer estar em outro lugar, em outro tempo, uma vontade que combina com a inquietude dos personagens.
estamos sempre correndo contra o tempo tentando nos acostumar com as coisas. como diz o policial 663: “as coisas não costumam mudar tão rápido. as pessoas precisam de tempo para se acostumar.”
acredito que a vida é sobre aceitar que nem tudo precisa durar pra ser importante. e mesmo haja coisas que passam, elas não passam da gente. quem sabe a graça seja essa, saber que tudo tem um prazo, mas ainda assim escolher amar. ainda assim escolher se jogar, mesmo sabendo que pode vencer antes do esperado. afinal a única certeza que temos é de que vamos morrer, já nascemos com prazo de validade.
e se as memórias tivessem prazo de validade… será que a gente teria mais coragem de deixá-las ir? ou será que sabendo do fim a gente amaria com ainda mais fome?
mas será que existe um jeito de estender a validade das coisas ou algumas coisas simplesmente não foram feitas pra durar?
Eu sou desses que tenta reorganizar a vida do outro pra caber um espacinho pra mim. Fiquei pensando: será que o amor também precisa de prateleiras arejadas pra não mofar? Wong Kar-Wai sempre me ensinou sobre a poesia do que não dura… e você também.
Achei cirúrgico